La Bohème | Teatro Municipal S. Luiz (Crítica)


Muito frequentemente, transposições temporais das acções das óperas têm-se revelado despropositadas e sem a presença de um fio condutor. Na La Bohème do Teatro de S. Luiz, uma concepção cénica muito simples e a tradução da ópera para português mostram a história de "um amor trágico num mundo em crise", provando que uma transposição temporal e local de uma ópera pode ser muito relevante, de modo a denunciar problemas sociais.

A direcção cénica de Michel Dieuaide é frugal (naturalmente devido às dificuldades económicas por ela representada) e não possui muitos adornos: mostra apenas o mínimo indispensável -- talvez uma forma de o encenador acusar as condições a que são sujeitos os artistas da geração "à rasca".

Na última vez que a Bohème passou em S. Carlos -- ainda nos obscuros tempos da "era Damman" --, a encenação também era muito simples; todavia, era difusa e não tinha um verdadeiro objectivo, posto que não tinha uma mensagem própria. Nessas récitas de Fevereiro de 2009, Schaunard foi interpretado por Luís Rodrigues, agora apresentado como o autor da tradução portuguesa dos inigualáveis versos de Illica e de Giacosa. Nesta nova versão, vai-se para o Bairro Alto, para a tasca do Zé, e Mimì é apresentada como futura estilista: introduz-se uma série de ideias interessantes, mas a delicadeza dos versos italianos perde-se.


A música adocicada de Puccini é grandemente impulsionada pela maravilhosa orquestração que, tal como em todas as óperas, provém do fosso da orquestra, flui e absorve a sala, criando um ambiente mais envolvente e uma atmosfera única nas artes do espectáculo. Infelizmente, em espírito de contenções orçamentais, a orquestra foi reduzida a um piano Steinway & Sons, sempre dedilhado por Jeff Cohen. O piano ouve-se na pequena sala do S. Luiz, mas não envolve o auditório; várias vezes no acto II, o PZ gritou imaginariamente para o piano "mais alto, impõe-te ao coro!". 

Foi acrescentado (de forma mais ou menos despropositada, visto que já não se tratava de Paris) um interlúdio de sonoridade francesa antes do acto II, do qual se subtraiu o coro das crianças e do Parpignol. O acto II foi trabalhado para ocupar o palco e recorrer à plateia, mas a encenação acabou por se tornar estática e a ária da Musetta (Eduarda Melo) revelou uma voz belíssima pouco maleável, com emprego cénico duvidoso, apesar da figura esbelta da cantora.

A Mimì de Catarina Mölder também tem a figura ideal para o papel da pobre e doente bordadeira -- ou melhor, aspirante estilista --, magrinha e devidamente maquilhada. A sua voz é fina e audível, mas o seu discurso é frequentemente imperceptível.

O PZ tem tido o prazer de acompanhar o tenor João Cipriano. Se a memória não falha, na primeira vez que o ouviu (no Elixir d'Amor do Teatro da Trindade, 2008, com encenação moderna e disparatada), a sua voz era bem mais pequena e abafável, e revelava dificuldades de respiração, mas o seu timbre simples e expressivo assegurou um Nemorino que até hoje ecoa suavemente na memória do PZ; a segunda vez foi em S. Carlos, em "L'Occasione fa il Ladro" (2010), e foi ainda melhor. Este Rodolfo foi, desta vez, excelente. Provavelmente beneficiou da acústica da pequena sala, onde a voz de tenor lírico-spinto soou pujante e quase inabalável no registo mais agudo.

Marcello, Schaunard e Colline foram interpretados por outros conhecidos dos palcos de ópera portugueses, formando um trio exemplar. Nuno Dias -- cantor que em S. Carlos dificilmente se consegue ouvir --, como Colline, provou o benefício da reduzida dimensão do auditório.

Como não poderia deixar de ser em La Bohème, Mimì morre na comovente cena final. Mas permanecem os amigos e os seus laços, do mesmo modo que, não obstante os correntes cortes orçamentais aplicados à cultura, um pequeno conjunto de artistas (note-se que o coro não tem mais de duas dezenas de elementos) consegue reunir-se e produzir ópera. E diz-se ópera porque é -- apesar de uma amputação de uma obra-prima operática -- um espectáculo simples, organizado, bem coordenado e convergente em qualidade. Fica uma opinião: o que será dado a ver ao espectador na Bohème no Teatro de S. Luiz não será, certamente, menos do que pagará.

que nota daria o(a) leitor(a)?
  
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2 comentários:

  1. Caro Plácido,

    Obrigado por esta crítica.

    Realmente é triste ver que jovens portugueses, de boa capacidade artística, têm que se sujeitar a estas produções, algo populares e sem o devido valor merecedor das suas capacidades, para poderem mostrar a sua arte.

    Ouvi a promoção na rádio a esta La Bohème mas não fiquei entusiasmado. A orquestra reduzida a um piano não torna esta produção mais do que um mero ensaio de cena e uma verdadeira desconsideração a estes artistas.

    Os tempos de hoje não ajudam mas, no fundo, nunca ajudaram...

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  2. Caro wagner_fanatic.

    A atmosfera que nos foi criada graças ao empenho destes sete jovens artistas, foi tudo menos a de um ensaio de cena.
    Instituições como o Teatro Nacional de São Carlos e outras, deviam por os olhos em iniciativas como esta, e repensar os seus objectivos, em vez de continuarem a arranjar desculpas para tudo e criar temporadas fantasma que custam milhões ao estado Português e onde nada se produz! Tudo para sustentar tachos e estruturas pesadíssimas.
    Diga-se o que se se disser o que estas pessoas fizeram no Teatro São Luiz foi ópera, foi arte. O mesmo não se pode dizer de outras instituições que a única coisa que produzem é ar....

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