O P.Z. encontrou-se em NYC durante alguns dias de
Maio para as últimas récitas de Butterfly, Puritanos, Così Fan
Tutte e La Cenerentola—incluindo a que passou Live in HD na
Gulbenkian. Ir à Metropolitan Opera é uma experiência completamente diferente: pensamento
a fervilhar com a recente produção da Madama Butterfly, olho
arregalado na escola antiga com Os Puritanos, canto insuperável
na Cenerentola e uma mistura de bom gosto e tudo o que se gosta na ópera
em Così Fan Tutte. NYC já não está certamente nos tempos áureos de Caruso
ou Price, embora continue sendo um ponto de referência internacional. Não foi a
primeira incursão do P.Z. à Metropolitan Opera, mas foi a primeira oportunidade
de ver a maravilhosa e mítica cortina dourada—omnipresente no imaginário
operático de qualquer melómano—cujo potencial dramático e teatral as novas
produções têm menosprezado.
Por trás da cortina, o P.Z. encontrou uma encenação
encantadora, onde os puritanos eram mesmo puritanos e o castelo tinha
muralhas, torres, e um magnífico enquadramento gótico na parte superior da
cena, com um arranjo floral. O movimento cénico é contido: por vezes, parecia
haver mais na música do que a movimentação elegante mas algo ultrapassada; ainda
assim, esse mesmo aspecto dava destaque e espaço à música, constituindo uma
virtude que muitas encenações modernas não têm. Bellini transforma todos os
sentimentos em algo bonito (o próprio “mau” não é mau) e o cenário foi um
suporte inesquecível, devido a estar completamente em sintonia com a música:
tudo era elegante e bonito. Apesar de tudo, destes 4 espectáculos que o P.Z.
viu na Met, este foi o cenicamente mais satisfatório. Nesta produção estreada nos anos 70 por
Pavarotti e Sutherland, tudo estava como era suposto ser em primeiro lugar. Memórias
(leia-se, lendas) das récitas iniciais destes cenários obviamente convidam
comparações e a Met fez uma preparação curiosa ao anunciar o elenco, apresentando
a soprano Olga Peretyatko como uma nova heroína.
A Elvira de Peretyatko tem um timbre magnífico e
uma coloratura boa, que se alia à sua figura elegante e muito credível. O seu
par, Lawrence Brownlee, corresponde bem com um timbre agradável e vibrante com
algo que faz toda a diferença nesta ópera: as notas agudas prontas para “Credeasi
misera”. O elenco principal proporcionou uma experiência envolvente; no
último acto, o P.Z. nem sentiu necessidade de olhar para as legendas. Infelizmente,
os protagonistas tinham vozes com reduzido volume—o que se torna especialmente
conspícuo numa frente de cena tão ampla. Visto ao vivo, Marcus Kwiecien (Don
Giovanni, Onegin, Malatesta em HD) foi uma surpresa devido à presença em palco:
o barítono domina a cena. No acto II, transmite a dúvida de Ricardo de forma
humana e ressonante. Quando lhe é pedido que procure o perdão para o seu rival
Artur, “atira” um “não posso!” em tom de conflito moral. Com a insistência de
Giorgio, muda de postura, racionalizando que a sentença “foi a vontade do
Parlamento”. Foi uma cena que tinha de ser presenciada, com um “Suoni la
tompa, intrepido!” cheio de entrega e convicção. (Na primeira récita,
Kwiecien não fez o segundo acto, mas o P.Z. tinha obviamente uma récita
suplente!)
Das quatro óperas, o caso mais curioso em
termos de encenação foi a Madama Butterfly, que o FanáticoUm descreve
com grande entusiasmo nos Fanáticos da Ópera. Esta Butterfly conta com
vários efeitos cénicos empolgantes e completamente originais, como o
inesquecível dueto de amor do acto I, a cena final e um prólogo silencioso.
Contudo, há várias perguntas que ficam responder. Porquê o teatro bunraku em
vez do menino em carne e osso—seria o filho de Cio-Cio-San um instrumento de
Pinkerton? Então porque o leva ele para os Estados Unidos? E porquê tanta
movimentação de holofotes? As forças da Met estão preparadas para virtualmente
qualquer efeito luminoso sem ter os holofotes no meio do palco. O P.Z. ficou
com a impressão de que o objectivo desta Butterfly é progredir em
direcção a uma estética cinematográfica, como provam a utilização de biombos
deslizantes para introduzir e remover personagens do palco, a criação de uma
área virtualmente invisível no palco (com os ditos holofotes) e o próprio dueto
do acto I. Porém, estes elementos acabam por constituir cenas disjuntas com
efeitos excessivamente cinematográficos para serem apreciados em teatro com
naturalidade. Por outras palavras, a Butterfly de Anthony Minghella é o
oposto da teatralidade quase passiva e da elegância da encenação dos Puritanos.
O FanaticoUm encara esta abordagem de forma diferente, o que prova que toda
esta análise depende fortemente do espectador—do mesmo modo que, saudavelmente,
apresentamos diferentes apreciações da referida ópera de Bellini.
Hui He é uma das sopranos que se actualmente se especializa
na Cio-Cio-San a nível mundial. O P.Z. ficou com a impressão de que a interpretação
foi demasiado preocupada com a irrepreensível projecção vocal, causando algum
prejuízo à expressividade. No Teatre del Liceu, no verão passado, com Ermonela
Jaho, o segundo acto da Butterfly foi literalmente de arrancar lágrimas,
mas Hui He frequentemente se tornou excessivamente histriónica para conseguir o
efeito comovente do acto II. (O P.Z. nunca se vai esquecer da agonia de Jaho numa
frase fundamental da ópera: “Ah, m’ha scordata?!”, ou no dueto com o cônsul:
“Não é assim no meu país.”, “Que é qual?”, “Os Estados Unidos!”). A Suzuki de Maria
Zifchak esteve em excelente plano mas Hughes Jones é um tenor lírico que
interpretou Pinkerton, que apesar de ter um papel curto, é destinado a um spinto.
A comparar com a fabulosa Butterfy de Barcelona, que por curiosidade
apresentava também Hui He num elenco alternativo, esta foi claramente apenas
uma tentativa de drama.
Por outro lado, um espectáculo de excelência foi
repertório que não costuma atrair particularmente o P.Z. Foi a produção de Così
Fan Tutte, com as suas paisagens cuidadas e imenso respeito pelo libreto.
Ao contrário da produção veterana de Puritanos, cujos cenários também
são fidelíssimos ao texto mas deixam o estilo da acção cénica parado do tempo,
este Così tem actuação dinâmica e cativante, sempre pronta a extrair da
ópera de Mozart o sentido de humor mais moderno—mesmo no contexto do século
XVIII. O elenco, com a vibrante presença vocal do Ferrando de Matthew Polenzani
e a Despina de Danielle de Niese, foi de excelente nível. (Susanna Phillips
esteve curiosamente desaparecida!) O Don Alfonso de Maurizio Muraro, sustentado
por uma postura vocal comandante, foi também grande mais-valia para o
espectáculo, que já seria excelente se ficasse por aqui. Porém, foi também uma
noite lendária devido à presença do mítico maestro Levine, a extrair das forças
orquestrais da Met uma sonoridade mozartiana extraordinária, que se deve
certamente a uma longa e frutífera cooperação de décadas. Depois do Falstaff
de Dezembro, esta foi a segunda experiência de Levine para o P.Z., mas certamente
não menos inesquecível, mesmo não sendo Mozart “a praia” do P.Z.
“Praia” essa que também não é certamente La
Cenerentola de Rossini: outro espectáculo fascinante, com um elenco de
sonho ou, como corre por NYC, the Rossini dreamteam. Quem mais pode hoje
em dia fazer frente às acrobacias requeridas por Rossini do que Joyce DiDonato
e Juan Diego Flórez? Só se forem DiDonato e Flórez com Pietro Spagnoli, Luca
Pisaroni e Alessandro Corbelli! Não foi ocasião de encores—provavelmente
por ser uma transmissão em HD—mas aplausos estrondosos estiveram em lugar,
provavelmente amputados prematuramente no final do espectáculo por uma queda
prematura da cortina. Já confrontada (via YouTube) a récita real com a
gravação, constata-se amplificação excessiva a um nível quase não natural.
Na verdade, ao contrário do que a gravação sugere,
Flórez não tem uma voz excepcionalmente volumosa; antes são suas insuperáveis
virtudes as notas agudas vibrantemente potentes, o fraseado elegante e,
claramente, a sua voz encantadora e melodiosa. Parte da sua fama deve-se à sua
figura, que também é credível e os “Metropolitanos” nativos têm em elevada
consideração. DiDonato possui uma voz penetrante, com coloratura excepcional e
um respeito imenso pela música e pela musicalidade. A sua Cinderela
(Cenerentola) é sonhadora e dócil, em última análise encantadora e triunfante
com bom gosto. A cena final—o verdadeiro momento da ópera guardado para a
soprano—foi assinalável, sem porém cair no típico desprezo do restante elenco,
que para uma última intervenção aparece em peso com um nível imbatível.
Bom gosto não será, porventura, o termo mais
adequado para referir a cena final (nem o resto da encenação), desenvolvida
numa estética de proporções e cores quase surrealista. As próprias personagens apresentavam-se com uma maquilhagem exagerada, à qual escapam apenas Don Ramiro e Angelina—seriam eles as únicas personagens não estereotipadas? Tal como se assistiu
recentemente em S. Carlos encenando Donizetti, há uma perspectivação da
história como conto infantil, o que se torna—o P.Z. disse e volta a dizer—extremamente
redutor, visto que reduz a verossimilhança da ópera . O conceito desta
encenação torna-se quase inútil porque nunca conseguirá fazer La Cenerentola—a
ópera em si—ser tão cómica como o primeiro espectáculo que se encontra descendo
a Broadway; mas, por efeito colateral, consegue chegar muito próximo do
pindérico. Isto porque a Cenerentola é uma ópera e não um musical. O
fortíssimo Dandini de Spagnoli, discutivelmente a personagem mais
impulsionadora da comicidade da ópera, é prova suficiente de que a música e a actuação
em conformidade são suficientes para veicular a intenção da ópera sem
interpretações rebuscadas. Corbelli, como Don Magnifico também teve uma
prestação excelente e as “irmãs” estiveram em bom plano, por vezes com alguma
estridência compreensível nos seus papéis.
O P.Z. chegou cedo para a Cenerentola e
aproveitou para deambular pela loja da Met, onde estava um círculo de 5 pessoas
que discutiam o DVD que estava a passar. O P.Z. juntou-se imediatamente ao
grupo: e durante vinte minutos discutiram as diferenças entre Javier Camarena e
Flórez como Don Ramiro, o elenco de Puritanos (cuja última representação
seria nessa mesma noite), a estética da ópera de Zurique, as últimas apresentações
de Pavarotti na Met (que um casal tinha presenciado), o fanatismo de uma
senhora búlgara que fez de tradição ir a NYC uma vez por ano para ver os filhos
e outra para ver a Netrebko (e, dessa vez, tinha visto todos os espectáculos de
segunda a sábado); o Amfortas dominante de Peter Mattei, a corrente encenação
da Butterfly e a antiga Traviata; um senhor alemão que tinha
desistido do festival de Bayreuth, o teatro de S. Carlos e Elisabete Matos na
Met. A conversa correu durante mais de 20 minutos e já começava a aproximar-se a
“curtain time”. O primeiro a quebrar o círculo foi um nova-iorquino, que se despediu
e seguiu para o auditório. Não tinha saído há 10 segundos quando voltou atrás,
olhou para os outros, e acrescentou “and we’re all crazy!”: todos se riram e, à
medida que iam tomando os seus postos para o Live in HD, repetiam com
bom humor “e somos todos malucos!”. Cada uma com as suas virtudes, foram cinco
récitas inesquecíveis na Metropolitan Opera House, que introduziram o lema do
P.Z. e de todos os leitores que aqui chegaram: “somos todos malucos”!
Caro PZ,
ResponderExcluirObrigado por este texto sumarento sobre a sua experiência vivida na Met. Também tive a oportunidade de assistir, ao vivo, às mesmas óperas, e concordo com grande parte das suas opiniões. Contudo, temos opiniões divergentes em relação aspectos da Butterfly e dos Puritanos, mas é muito salutar que haja divergências pois, nem todos, interpretam tudo de forma idêntica.
Mas é um enorme privilégio termos a possibilidade de assistir ao vivo a espectáculos operáticas no maior (e um dos melhores) teatro de ópera do mundo.
Espero que possa voltar lá com brevidade e, quando tal acontecer, partilhe aqui as suas experiências, que são sempre muito apreciadas!