O suspense na ópera e em “Il Tabarro”



No século XIX, Wagner apresentou dramas musicais épicos com um sentido próprio de um dito “suspense”. Restava prosseguir o trabalho do mestre, juntando esse dito conceito a algo que a ópera conhece bem—o assassínio. Debussy obteve um efeito interessante com Pelléas et Melisande, criando uma aura de morte quase mórbida. Todavia, a preocupação com o suspense foi de tal ordem, que Pelléas permanece no repertório como uma ópera imponentemente nebulosa—outra maneira de dizer cavernosa e pouco acessível. À sua maneira germânica, Richard Strauss também obtém efeitos de suspense impressionantes com Salomé e Elektra. Ao contrário de Pelléas, que aparenta caminhar para uma morte obscura, Salomé começa com o suicídio de Narraboth, cujo corpo permanece parte da ópera em palco até Herodes notar. “Que faz este homem aqui? Não mandei matá-lo. Não quero vê-lo aqui”, indaga Herodes, misteriosamente atormentado por uma dantesca sensação auditiva de “um bater de asas gigantescas.” Ao longo da ópera, à medida que o ambiente se adensa, Herodes vai libertando a sua pressão, evidenciando a bolha de suspense que se vem formando. Já perto do final, exclama “escondam a lua, escondam as estrelas! Algo horrível vai acontecer!”, ouvindo-se de seguida o motivo (já em si inquietante) de Salomé.

O repertório comum da ópera italiana raramente encontra este tipo de ambiente. Puccini consegue algumas aproximações com a música do final do acto II e o amanhecer na Tosca e, na Butterfly, com o dueto das flores e o coro em boca fechada; mas não se tratam de construções elaboradas ao longo de uma ópera inteira. Ainda no século XIX, houve algumas tentativas por Verdi, com O Trovador (“Stride la vampa!”, “miserere”), o Ernani ou A Força do Destino e outras obras que parecem convergir para uma fatalidade. (Aliás, a propósito do Trovador, o PZ ficou admirado com a última encenação em S. Carlos por causa da aura de mistério que se desenvolvia a partir do acampamento dos ciganos.) Com a cena do julgamento, a Aida também apresenta alguns momentos de suster a respiração. Contudo, as obras de Verdi primam pelo seu lirismo mais do que pela criação de suspense. Na verdade, nem na ópera italiana, nem na ópera em geral existiu uma corrente “suspensionista”. A obra de Wagner cuida de profundas discussões sobre a humanidade; Verdi procura o elo entre o bel canto e a grand opéra; Debussy não deixou outras óperas além de Pelléas e Strauss acabou por inflectir para uma via mais poética do que Salomé ou Elektra. No Onegin de Tchaikovsky, a ária de Lensky anterior ao duelo (Kuda, kuda…) transborda emoção e lirismo em vez de inquietação. Foi Puccini quem teve de abrir caminho para encontrar o “amor, e amor violento” tão necessitado na ópera.

Dificilmente se pode pensar na doença—o único mau na Bohème—como “amor violento”; o expectador terá de se contentar com as referências nos versos a um Rodolfo “colérico, lunático e cheio de preconceitos”. Mas o acto II da Tosca e o suicídio da Butterfly por seppuku têm outra figura. Em 1910, como aqui se celebrou, Puccini levou ao palco da antiga Metropolitan Opera o Johnson de Caruso a ser enforcado no acto III, depois de levar um tiro no acto anterior; Minnie empunha uma espingarda para salvar o seu bandido amado. Nenhum compositor tinha sido tão ousado até à data. Houvera homicídios e suicídios; duelos e veneno: mas nunca uma diva a saltar do Castelo de S. Ângelo; nunca um seppuku japonês; nunca um enforcamento nem uma mulher pronta para disparar sobre quem quiser tirar a vida ao seu amado. Como na Fanciulla del West, nem mesmo Florestan e Leonor (Fidelio).

Existe uma raridade que, nos últimos meses, tem chamado a atenção do P.Z. Trata-se provavelmente de um expoente do estilo; é uma ópera simples, concisa e completamente absorvente. Em bom rigor, não se deveria chamar ópera a Il Tabarro, visto que é apenas uma parte de 3 que compõem O Tríptico de Puccini. Porém, nesta peça de 50 minutos, todos os personagens parecem esconder alguma coisa. Que procura Luigi? Se está pronto para espetar a navalha e sufocar Michele em sangue para ficar com Giorgetta, porque não prefere ele simplesmente fugir com ela?



Há alguns meses, o “Ars Super Omnia” partilhou um artigo muito interessante de Cambridge que discutia as hipóteses e o suspense no Lohengrin de Wagner com a pergunta proibida (Frageverbot), aplicando teoria dos jogos. (Perguntar, não perguntar; Lohengrin impostor versus salvador.) Tal como no Lohengrin, a pergunta “que procura Luigi?” é função da intenção da personagem. Nesta caso, “matar Michele?” versus “continuar a bordo?”. No final do segundo dueto, Luigi afirma claramente num momento climático “sim, juro-te que não tremo, espetar-lhe-ia esta faca e com o seu sangue faria uma joia para ti!”, o que sugere intenção de matar o chefe. Matando, não faria sentido fugir, visto que fugir não implica a morte de Michele; em contrapartida, a fuga seria possível com Michele vivo e poderia ser realizada em Rouen. Não fica claro porque pede Luigi ao chefe para o desembarcar em Rouen; a própria Giorgetta confirma “diz-me porque lhe pediste que te desembarcasse em Rouen”. O desembarque em Rouen poderia ter, portanto, dois desfechos: uma fuga conjunta com Giorgetta ou uma tentativa de a deixar.

Mas, quando Michele lhe diz que é melhor continuar a bordo e Luigi anui, se for sua intenção matar o outro, parece que a resposta a “quem é Luigi?” se inclina para “um rapaz ganancioso em busca de trocar o posto com o patrão”. Permanece, porém, a dúvida de Rouen, que dá relevância a esta análise. De facto, há quatro cenários possíveis para Luigi: um ganancioso, um conformista, um cínico e um psicopata.

Recapitulando, Luigi pode ficar a bordo ou sair em Rouen. Apesar de pedir para ser desembarcado em Rouen, não é possível ter a certeza de qual é a sua intenção, visto que pode ser apenas apressar Giorgetta a abandonar “esta vida vagabunda” com ele e começar uma nova vida nos subúrbios de Paris. Um momento climático da ópera ocorre quando Luigi afirma decididamente que está pronto para assassinar Michele, seu empregador e marido da sua amante Giorgetta. Abrem-se, assim, mais duas janelas: Luigi pode pretender, de facto, matar, ou apenas atrair Giorgetta com a ilusão de que podem fugir sem serem perseguidos. Ou até talvez largar o cadáver do outro e zarpar no barco pelo Sena acima sem que ninguém os possa identificar, sendo o lucro não só uma nova vida, mas também um sustento garantido com uma autonomia renovada. Cruzando-se estes pares de possibilidades, abrem-se quatro janelas, que acabam sendo tragicamente fechadas no final de Il Tabarro. Parece um filme de Hitchcock, em que todos escondem qualquer coisa, a história vira-se e acaba por ser o próprio Michele o assassino de Luigi, deixando incerteza total sobre a personalidade de uma personagem principal.

Outra virtude desta ópera reside na música. Quando o pano sobe, há uma descrição perfeita da oscilação das ondas do Sena e dos barcos que vão passando. Durante alguns segundos, a atmosfera torna-se apaixonante, mas imediatamente surge uma desenvoltura mais dramática—discutivelmente um encontro de olhares entre Giorgetta e Michele—apontando para um amor proibido. Desde a música de abertura, a partitura é sempre absorvente, apresentando-se em sintonia com a acção e revelando algumas ironias (como o vendedor de canções durante uma discussão matrimonial). O suspense vai sendo construído. Há uma conversa de amigos que, apesar de referir apenas o amor pela vida nos subúrbios em detrimento desta “vida vagabunda” num barco, deixa óbvio que subjaz uma intenção amorosa, primorosamente suportada pela música. Aliás, a Frugola nota ironicamente “ah, agora percebo, a vida é diferente a bordo”. Na produção da Metropolitan Opera de 1991 (Domingo, Pons, Stratas), esta frase surge em tom amigável, enquanto a produção de 1981 (Scotto, McNeil, Moldoveanu) usa este momento como uma censura, demonstrando o espaço de manobra que esta ópera tem dentro das incertezas que gera.

Quando a Frugola sai de cena, há um momento delicioso, um vai-e-vem, cheio de hesitações entre Luigi e Giorgetta, sucedido pelo referido dueto em que Luigi abre o jogo. Ao momento climático, segue-se uma resposta: a origem do insucesso do casamento de Michele e Giorgetta. Parece ter havido um tempo remoto (“tardes como estas”) em que tudo estava bem; depois, houve a perda de um filho. Giorgetta diz que já não é a mesma e também Michele mudou, à medida que o influxo musical da tenção de uma discussão matrimonial assenta no vazio com a orquestra a reduzir-se ao cromatismo da paz da ondulação do Sena: “é melhor não recordar…/ hoje é melancolia”…

Finalmente, Michele encontra-se só. Expressa a sua suspeita sobre a infidelidade da sua mulher. Mas mais uma vez—uma dúvida. “Quem, quem espera ela?!”. É a dúvida que tortura Michele; e a audiência também, que apesar de saber a resposta à dúvida de Michele também está cheia de dúvidas sobre o outro lado da história. A ária final (Nulla, sillenzio…) é o epítome do suspense que se gera ao longo de Il Tabarro, culminando com os versos “A paz está na morte!”. Na versão alternativa da ária, surgem as expressões “fundo mistério…. a ânsia que me aflige não tem fim”, suportando esta ideia. E, por outro lado, esta ária é o mesmo que se apresentou no primeiro parágrafo, a propósito da Salome de Strauss. Herodes, sentindo o “bater de asas gigantescas”, procura chamar a atenção para si mesmo, ordenando que se escondam a lua e as estrelas. Evidentemente, Il Tabarro não tem a mesma dimensão psicológica da Salome, mas Michele exclama “dividi com me questa catena!” da mesma forma que Herodes procura libertar-se da expectativa que o drama de Salomé cria. Para o PZ, Salome e Il Tabarro são obras que andam a par, em estilos completamente diferentes. Mas o Tabarro continua a ser a ópera menos apresentada das três que compõem Il Trittico