"Como é possível gostar de uma ópera em língua estrangeira?" (crónica)

Uma Questão Relevante
Um leitor perguntou há alguns meses como é possível disfrutar de uma ópera cujo idioma o espectador não compreende. É uma pergunta relevante, que de uma maneira ou doutra todos os apreciadores de ópera aprenderam a ultrapassar. Um primeiro aspecto fundamental e, infelizmente, verdadeiro, é que a ópera não é para todos; é uma arte que requer dedicação para a sua compreensão. Há várias etapas para se alcançar a sublimidade daquilo que é a arte operática. A primeira é, naturalmente, a descoberta de um paradigma artístico diferente, em que a fala é convertida em canto.

 

Encontre um desafio relativo a este filme no final do texto.


Um Mundo Diferente
Além da barreira do canto—que torna a ópera em algo que se estranha por diferir da vida real—, há a barreira do idioma. Numa primeira fase, o espectador procura converter o canto em linguagem falada, sendo a melhor aproximação possível a leitura das legendas durante o espectáculo. Portanto, nesta fase, o texto funciona como transmissor da história. Nas últimas décadas, quase todos os teatros investiram num sistema de legendagem por cima do palco cénico; porém, nos tempos em que a ópera era mais popular, não havia legendas—o que aponta para o próximo passo. Nesta fase, a música é entendida somente como finalidade decorativa.

Um Segundo Contacto Com a Música
Passadas algumas óperas (6 ou 7, no caso do P.Z.), o espectador já está mais familiarizado com o paradigma da ópera e está pronto para o próximo passo: o reconhecimento da importância da música como elemento dramático fundamental (entenda-se por drama a acção teatral). Neste ponto, o P.Z. diria que já se aprecia a ópera de forma autónoma, pelo que esta situação é condição suficiente para gerar curiosidade artística e um ímpeto para a exploração desta arte. O texto perde relevo e a música começa a tomar conta do panorama geral da ópera.

O Verdadeiro Contacto Com a Música. 
À medida que este estado se verifica, o espectador passa a informar-se melhor sobre o libretto, permitindo-se alocar mais atenção ao fio dramático. Torna-se visível que o texto das óperas é sempre o mesmo e, uma vez assimilado, a música ganha cada vez mais relevo e é finalmente reconhecida como o principal veículo de drama. Repare-se que a questão não é a língua em que os cantores cantam; é o drama e a forma como o espectador está predisposto para o sentir através da música e do canto. Isto é, a partir de certo nível, as palavras tornam-se quase irrelevantes.
      Naturalmente, ajuda perceber uma palavra ou outra de vez em quando, mas é facultativo desde que se conheça bem a história e se esteja predisposto a absorver o drama através da música. A eficiência desta predisposição vai aumentando à medida que o espectador vai compreendendo melhor o paradigma da ópera. Como prova da irrelevância da língua, o P.Z. pode partilhar a experiência de amigos italianos seus. Eles próprios não percebem muitas das palavras por serem cantadas, mas isso não impede os italianos de serem o povo mais devorador de ópera no mundo.

Hábitos de Ópera

Hoje em dia, em regra, é considerada uma boa prática ler as sinopses das peças antes de se verem no teatro. Porém, antigamente, era vulgar lerem-se traduções completas do libretto—tradição que se perdeu com a presença das legendas. De facto, esta prática permitia aos espectadores aliarem o seu conhecimento prévio sobre a ópera à acção em palco. E, por experiência própria, o P.Z. pode garantir que é muito mais fácil do que se imagina lembrar as leituras prévias quando se está a ouvir a ópera no teatro. 
      A partir de certo ponto da maturação do espectador, este apercebe-se de que aquilo que, no princípio, era visto como fatalidade (ter de olhar continuamente para cima para ler as legendas e depois para baixo, para ver o palco) é na verdade uma distracção que afecta a dita “eficiência” da fruição do drama. 
     Um exemplo de topo do poder da música é Wagner. Está tudo na música; todos os elementos dramáticos são audíveis. A leitura do libretto é fundamental visto que estes, em muitos casos, são de grande qualidade literária. Porém, embora o P.Z. não perceba alemão, já chegou a uma fase em que as legendas são evitáveis. Este exemplo é extremo porque o poder de Wagner está tão concentrado na música, que só um espectador muito experiente pode reconhecer a sua grandeza.

A Pergunta Certa e Problemas Subsequentes

A pergunta que motiva este texto é, portanto, a pergunta errada. Não deveria ser “como se aprecia uma ópera, se é numa língua que eu não compreendo”, mas “como se aprende a apreciar a linguagem da ópera”. A resposta, de forma resumida, é não se importar demasiado com o texto e procurar atingir o drama através da música. Esta capacidade desenvolve-se através de pesquisa e interesse, que em princípio se multiplicam a partir do momento em que o espectador encontra uma ópera que o faça sentir na pele o poder da música na ópera. Para o P.Z., foi uma Tosca em S. Carlos. 
      As más notícias são que gostar de ópera em Portugal pode ser frustrante nos tempos que correm, visto que quanto mais se percebe do assunto, maior é a percepção das rugosidades que prejudicam o espectáculo. Os grandes aficionados ficam limitados a ver DVDs, vídeos no YouTube, ouvir CDs ou até mesmo viajar em busca de boas produções de ópera. E isso nem sempre funciona, posto que infelizmente não se vive propriamente numa era de ouro para a ópera e o 25 de Abril ainda não chegou para a ditadura dos encenadores que assola o teatro em geral.

Desafio
(Vídeo acima.) A ópera é Palhaços, de Leoncavallo. Na ópera, Cânio é uma pessoa "de carne e osso", trabalhando como artista de rua. Quando se vai preparar para o espectáculo dessa noite, descobre a sua mulher com um amante. Mas a hora do espectáculo aproxima-se e, por enquanto, Cânio tem de se vestir e maquilhar como palhaço, tentando esconder a sua angústia. O desafio consiste em ver o vídeo depois de ler a tradução do monólogo de Cânio e procurar encontrar na música o significado do tal "drama":
"Actuar! Enquanto estou preso pelo delírio
Já não sei o que digo ou o que faço!
Então vamos, esforça-te!
Mas és tu um homem?!


Tu és palhaço.

Veste o fato e e enfarinha a cara
As pessoas pagam, e querem rir

E se o arlequim te rouba a colombina
Ri, palhaço, e todos aplaudirão!
Transformas em pantomimas o riso e o pranto
E, numa metamorfose, o soluço e a dor...

Ah, ri, palhaço, sobre o teu amor destroçado!
Ri da dor que te envenena o coração!"

Quais são as experiências dos leitores?

5 comentários:

  1. Excelente texto, PZ. Para mim, no exemplo que coloca, são logo os primeiros acordes que expressam o significado do drama. Mesmo sem ver o vídeo ou ler a tradução do monólogo...

    ResponderExcluir
  2. Fico sempre com a sensação de que se percebesse o alemão, perdia a atenção sobre a expressão do cantor e da música, em Wagner. A língua por a não conhecer transforma-se em sons musicais e isso é uma mais valia. Uma vez, numa tasca da Nazaré, vi duas mulheres analfabetas a verem na TV uma série sobre Guilherme Tell. Como não percebiam a língua e não sabiam ler, inventaram uma história para aquilo que viam sempre com muito interesse. Foi um fascínio ouvir os comentários que iam fazendo. Sinto-me assim muitas vezes e não vejo qualquer inconveniente. A existência de legendas obriga-me muitas vezes a tirar os olhos da cena o que é péssimo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Excelente ilustração, o episósio em Nazaré. Faz-me lembrar um aspecto que não desenvolvi no texto (se não se importam, farei mais tarde essa alteração). Estava eu ao piano em casa da minha avó a arranhar uma Gymnopédie e entra a empregada, também ela analfabeta. Olha para mim e diz "mas essa música não dá para dançar!". Acho que tentei fazer qualquer coisa mais animada mas ficámos por aí. Isto para ilustrar outro o obstáculo: pensar na música como conceito somente rítmico. Pode funcionar com Rossini mas falha com todos os outros compositores.
      Outro erro é apreciar a música principalmente pelo liricismo. A minha avó teve uns 70 anos de ópera e só no fim viu a primeira ópera de Wagner que a cativou. Era nada mais, nada menos, que o Parsifal. Só foi preciso eu explicar-lhe a "linguagem" wagneriana numa conversa que durou bem mais de uma hora. Porque de facto, nunca se tinha apercebido de que o que parecia uma estucha era na verdade uma linguagem diferente--e da melhor que há nas artes.

      Excluir
  3. Boa noite,

    Tenho uma questão que lhe gostaria de colocar, que embora não se relacione com este tema em particular, diz respeito ao TNSC.
    Como espetador inicante deste tipo de espetáculos, ainda não possuo experiência suficiente para me orientar num aspeto técnico mas fundamental da sala: Quais são os melhores lugares do TNSC? Coloco-lhe esta questão, à qual não encontrei qualquer menção na Internet, na espetativa de alguma orientação.

    Bernardo Travessas

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. A escolha mais equilibrada para um iniciante seria, na minha opinião, a plateia entre as filas J e O. Quando chegar ao "Verdadeiro Contacto Com a Música" que está descrito neste texto, pergunte-me outra vez.

      Excluir