Repensando "Tristão e Isolda": o papel da vontade humana (crónica)

Através do teatro de São Carlos, aproxima-se a estreia de Tristan und Isolde de Richard Wagner no CCB. Tristan é frequentemente considerado o pináculo da obra de Wagner. À semelhança dos trabalhos maduros de Wagner, Tristan é um drama musical denso, envolto por uma bruma musical de grande intensidade. A intensidade aumenta por via do densenvolvimento de uma rede conceptual, unida pelos leit-motive. (Esta playlist no YouTube compila os motivos principais.)
      Devido a este complexo sistema, Tristan pode ter o poder de transportar o espectador para a realidade do drama e, como tal, ter um efeito sobre o estado de espírito do espectador que perdura durante dias ou até semanas. Porém, esta rede é de difícil acesso: não será à toa que ouvi Tristan adjectivado como “aborrecido” e “de difícil acesso”... até em Bayreuth.
      Numa breve nota, motivado pela seguinte entrevista a Elisabete Matos, gostaria de discutir algumas visões sobre o Tristan.  

      A discussão sobre o verdadeiro assunto do Tristão e Isolda de Wagner tem ganho relevância nos últimos anos. Neste caso, foi motivada pela afirmação de que a ópera terá sido inspirada pelo triângulo amoroso vivido por Wagner e os Wesendoncks por volta de 1855. A constatação é historicamente verosímil mas redutora para o propósito da análise da ópera. 
      Uma das questões que persegue melómanos e filósofos é o significado do Parsifal de Wagner. E digam os leitores: sobre o que é o Parsifal? Há inúmeras respostas argumentáveis mas todas elas assentam em incerteza e são derrubáveis por um bom argumento ou uma boa encenação, como recentemente provaram, por exemplo, Dmitri Cherniakov e Claus Guth. É sobre a tradição cristã? Então porque é que nunca é referido o nome de Jesus? É sobre compaixão e respeito ao próximo? Então porque é que Parsifal, depois do acto II, participa no massacre religioso das cruzadas? Existirá mesmo um graal? Terá Amfortas mesmo uma ferida? O que pretende Klingsor? 
      Nem tantos se perguntaram se Tristan é mesmo sobre amor ou qualquer um dos temas em torno dos quais o drama musical parece gravitar. Porque é que um machista como Wagner, que deserdou todas as filhas, quereria elogiar um amor tão transcendental como Tristão e Isolda apresenta? Expecionalmente inteligente e creativo, Wagner reconheceu a potencialidade da lenda celta para veicular uma ideia muito mais ampla: a fragilidade da vontade humana. 
      Esta teoria parece mais razoável, tendo em conta que o amor em Tristan é completamente artificial. Inicialmente, Isolda pretende assassinar Tristão; a única razão pela qual se apaixonam é uma poção de amor. Poderia haver algum elo mais absurdo neste amor? A poção mágica é, como o universo fantasioso do Anel do Nibelungo, simplesmente um pressuposto que cataliza a acção. Através do pressuposto de que há uma poção mágica, Wagner abre caminho para ilustrar o que verdadeiramente pretende. Num segundo, Isolda despreza Tristão; o herói despreza-se a si próprio: no segundo seguinte, amam-se desesperadamente. Quão frágil e volátil é a vontade humana?  
      No acto I, Melot é o amigo de Tristão; no acto II, é o seu rival. No acto II, o rei Marke revela a sua profunda mágoa pela traição de Tristão; no acto III, será que esquece mesmo e perdoa? Todas as personagens principais viajam espiritualmente através da ópera. Mais perto do final, até Tristão se apercebe do quão excessiva é toda a sua emoção. Porém, frágil ser humano, sucumbe aos sentimentos ao ponto de rasgar as ligaduras e sangrar até à morte, antes mesmo de ver Isolda. Quando Isolda chega, culpa Tristão por ter morrido antes de ela chegar: quão contraditória é a vontade de Tristão à sua morte e quão doentio é este amor? 
     Quando vir o Tristão, não se esqueça de que não está a assistir a uma simples história de amor: mas sim a uma profunda, densa e simbólica discussão sobre a vontade humana. A história de amor é apenas a máscara para o verdadeiro plano de fundo e, se bem veiculada, poderá ser uma experiência transcendente. Note-se porém que a grandeza desta obra é tal, que mesmo sem ser considerado em toda a sua extensão, Tristan consegue ser um trabalho extremamente envolvente.

A seguir: Tristan und Isolde no CCB (crítica)
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