Revisitando e degustando a temporada 2016-17 em S. Carlos

Desde a Carmen até ao Festival ao Largo, a temporada em S. Carlos surpreendeu positivamente. Alguns espectáculos deixaram boas impressões e outros foram mais mistos. Uma temporada de ópera é como um vinho: alguns vinhos têm sabores mais diversos e outros são mais aborrecidos; alguns são mais longos, e outros mais curtos na boca. Contudo, ter bons sabores e aromas é uma qualidade que não implica que os sabores sejam duradouros. Por exemplo, vi recentemente uma excelente produção de Der Rosenkavalier em Londres mas não me ocupou o pensamento por muito tempo; mas ainda hoje penso na produção de Der Zwerg desta temporada em S. Carlos. A virtude desta temporada foi não o sabor, mas a forma como este perdurou. Patrick Dickie ofereceu uma temporada apreciável que, acima de tudo, deixará alguns elementos para recordação. Estes elementos podem ser pouco sofisticados mas, por vários motivos, deixam uma sensação de satisfação. Das sete óperas representadas, apenas 2 foram repertório invulgar: Oedipus Rex e Der Zwerg. Peter Grimes também é uma escolha pouco evidente mas, pelo menos, tem referências discográficas relevantes e é também um ícone da ópera britânica. Contudo, a ousadia estilística da escolha destes trabalhos foi notavelmente contrabalançada pelo profissionalismo que se viu em palco. No passado recente, o desequilíbrio entre a ousadia da escolha de repetório e o produto final em palco foi, no mínimo, sofrível. No meio artístico, Patrick Dickie é criticado pela preferência dada aos artistas britânicos sobre os portugueses, que são relegados a papéis secundários e ao coro. A crítica compreende-se num enquadramento político (sobretudo, ironicamente, numa lógica nacional-socialista anti-europeia). Porém, na minha opinião subjectiva, a rede de contactos do director artístico produziu o ambiente mais profissional que vi no palco de S. Carlos nos últimos anos. Consequentemente, o juízo de valor que o leitor terá sobre a direcção artística de Dickie depende da forma como valoriza relativamente a produção artística e a empregabilidade de artistas portugueses. 
      A Carmen de Bieito foi aqui apelidada de “só mais uma Carmen. Foi de facto um espectáculo oscilando em torno da banalidade mas, dada a encenação provocadora e até um bocado sobrepovoada e aleatória, acabou por estimular o pensamento ex-post. (Sobretudo à medida que iam saindo notícias da sua reposição em Itália e, recentemente, em Paris.) O mesmo não foi o caso de Oedipus Rex de Stravinsky. Sem prejuízo da peça original de Sofócles, a ópera não me pareceu particularmente profunda em termos de psicologia. O espectáculo em um acto foi uma curiosidade interessante: pouco pertinente mas bem executado cénica- e vocalmente. O tenor Nikolai Schukoff deixa uma boa recordação e suspeito que daria um bom Tannhäuser. Não escrevi sobre o espectáculo simplesmente porque não me senti à vontade com a obra. Passaram 83 dias até à continuação da temporada de ópera, ou seja, praticamente tanto tempo quanto os teatros de ópera das capitais desenvolvidas tiram durante as férias de verão. Fui contando os dias para encontrar um espectáculo de grande heterogeneidade; embora o profissionalismo na Anna Bolena fosse evidente, a receita vocal e cénica simplesmente não funcionou. A reposição da encenação da arena de Verona pareceu barata e pouco trabalhada; os cantores eram experientes mas também não funcionaram como grupo. Mais tarde, depois de perceber que as opiniões sobre a intérprete principal se dividiam, encontrei este vídeo no YouTube, onde Mosuc interpreta, aparentemente no topo das suas capacidades, as árias finais da ópera. Na altura, havia vários comentários e votações que foram, desde então, apagados pela soprano. (Que pena eu não ter tirado um screenshot!) Alguns comentários eram positivos e outros bem negativos. Depois de voltar a ouvir a gravação, que parece semelhante àquela que ouvi em S. Carlos, continuo a achar a coloratura pretensiosa e horrível. Ter dado duas estrelas ao espectáculo foi, na minha opinião, justo para Mosuc mas injusto para a mezzo Jennifer Holloway e para o tenor Cortellazzi. 
      Seguiu-se a antecipada “significativa produção wagneriana para os lados de Belém: Tristão e Isolda. No geral, a experiência foi memorável não só pelo espectáculo em si, mas também por ter sido um agradável fim de tarde no jardim—e na proximidade dos pastéis. A produção em si não foi de grande referência: um elenco principalmente em fim de carreira, o “erro de casting” de Luís Rodrigues como Kurwenal, uma encenação que evocava momentos das encenações da Metropolitan Opera e da Deutsche Oper de Berlim... Foi um espectáculo essencialmente sub-óptimo, com uma organização muito respeitável e um enquadramento logístico cujo bom resultado nunca esquecerei. Seguiu-se uma inesperada dupla operática: Pagliacci e Der Zwerg. A produção de Pagliacci foi essencialmente convencional, sem estar livre de alguns detalhes que recordam estética de outros encenadores recentes. As vozes não deslumbraram. Regressando à analogia dos vinhos, este foi aquela colheita que não desilude mas rapidamente desaparece da boca. Quando eu disse a um amigo que a melhor parte do espectáculo seria Der Zwerg, respondeu-me “Está a falar a sério ou está a brincar?”. Aliás, se eu tivesse dito isso a mim próprio antes de ver a récita, teria pensado que eu estava a brincar, até porque tinha conhecido alguém que iria integrar o elenco e se queixava de que a ópera era só gritos. Como escreveu o FanaticoUm, o tenor Peter Bronder ultrapassou “sabiamente” as dificuldades do papel; Dora Rodrigues também se destacou muito positivamente no seu pequeno papel. O espectáculo e a obra foram aquela reserva devidamente envelhecida: o sabor merece alguma apreensão no início mas revela-se rapidamente na evolução em garrafa. O gosto é sofisticado e perdura na boca. 
      Também não escrevi sobre Peter Grimes porque é um trabalho com o qual não me sinto à vontade. Pensado bem, o objectivo da obra é precisamente desconfortar o espectador, como o monólogo de Tristan. Britten faz pensar sobre a sociedade e apresenta diversas ambiguidades desconfortantes. A encenação de David Alden é obviamente muito experimentada e profissional. Começa sobrepovoada por diversos e enigmáticos símbolos: vamos compreendendo alguns mas outros ficam por revelar, como a mente de Grimes. Alden inclui também elementos controversos que talvez Britten não tenha coragem de incluir na sua crítica social, como a pedofilia na igreja e a prostituição. (A quantidade de espectadores que se foram embora no intervalo, presumivelmente por essas controvérsias, foi assinalável.) O Grimes de John Graham-Hall foi notável, com voz e expressividade de profundidade. Também é relevante notar que Maria Luísa de Freitas—a arqui-inimiga deste blog há anos—apresentou uma excelente caricatura da Mrs. Sedley. A voz desagrada-me imenso noutro tipo de papéis mas foi assinalável neste. Pareceu-me que assisti a uma boa montagem de Peter Grimes. Seria de esperar que uma obra tão enigmática quer em termos da música, quer em termos da encenação, perdurasse no nosso espaço de reflexão. Porém, a densidade de enigmas que ficam por responder é tal, que é também um espectáculo muito cansativo e maçudo não só de ver, mas também de repensar. É, portanto, como o vinho cuja duração no palato é intermédia. A temporada também mostrou outros aspectos dignos de louvor, como a cooperação com o maestro Graeme Jenkins em Tristan und Isolde e Peter Grimes e um muito positivo regresso do infame Martin André ao fosse de orquestra em Pagliacci e Der Zwerg. Finalmente, o Festival ao Largo deixou de ser tão flagrantemente uma “Embrulhada ao Largo”, passando a celebrar o objecto artístico da Opart em 7 dos seus 14 espectáculos. Por outras palavras, o Festival bateu o seu recorde ao apresentar ópera ou bailado (que são o objectivo da empresa que gere o teatro!) em 50% dos espectáculos. O número representa um aumento em relação ao ano passado, quando apenas 27% dos espectáculos do Festival serviram o seu propósito. Boas notícias: somente 50% do dinheiro do contribuinte foi mal usado! Ainda assim, continuo a pensar que o Festival ao Largo é um desperdício de dinheiro porque (1) só serve a 33% a ópera, i.e., o propósito histórico do Teatro Nacional de São Carlos, (2) não tem um público-alvo definido, não prometendo qualquer retorno sobre o investimento e (3) o festival é realizado num espaço desconfortável e que ameaça a segurança de alguns espectadores. Enfim, é melhor não pensar mais nesta “Embrulhadinha ao Largo” e recordar esta temporada lírica com agradável memória, que perdura suavemente ao contrário de temporadas passadas.

Imagem: James Black Management

A seguir: Uma noite no CCB (crónica)