L'Enfant et les Sortilèges em São Carlos (crítica)

Um dos pilares da gestão de recursos é a diferença entre “doing things right and doing the right things” (fazer as coisas bem vs. fazer as coisas certas). L’Enfant et les Sortilèges em São Carlos é o paradoxo da má alocação de recursos: utilizar os recursos certos para montar o espectáculo errado. Da produção da ópera de Ravel, o espectador pode esperar encontrar um elenco de primeiríssima água, um coro assim-assim e um espectáculo com graça. Um espectáculo com graça não é, porventura, aquilo que eu desinformadamente esperava encontrar no único teatro de ópera nacional.
      No enredo desta ópera, há uma veloz multitude de acontecimentos que dificulta a compreensão desinformada. Também paradoxalmente, em L’Enfant, embora se passem tantas coisas e tão rápido, no cômputo final parece que não se passou nada. Enquanto ópera para crianças, duvido que faça sucesso porque de certeza que as crianças achariam mais piada a outro tipo de espectáculo infantil. Enquanto ópera para adultos, duvido que desperte grandes emoções sem ser junto dos chamados “três f” – family, friends and fools (“família, amigos e parvos”).
Picasso: Garçon à la pipe.
      É uma tarefa ingrata recordar os cantores que estiveram em palco. Habitualmente, gosto de demorar algumas linhas para recordar bons momentos e apresentar alguma interpretação daquilo que vi. Neste caso, francamente não tenho grandes interpretações porque achei a obra um vazio de ideias indigno de S. Carlos. A virtude estética do espectáculo dá para arrancar umas gargalhadas – mas são maioritariamente inconstrutivas ou fáceis. Assim sendo, foi um prazer ouvir de novo Bárbara Barradas (fogo e rouxinol); a voz parece mais encorpada do que no passado e a coloratura é trabalhada, com uma infeliz ligeira tendência para a estridência na finalização dos agudos. Terei todo o prazer em ouvi-la novamente num papel mais interessante. Suspeito que Marguerite (Fausto) ou Juliette (Romeu e Julieta) seriam apostas apropriadas. Ouvir novamente Sónia Alcobaça (cadeira, coruja, etc.) também foi um prazer. O papel inicial (não sei qual era) começava com umas linhas de efeito simples mas, suponho eu, de difícil execução. Por isso, o princípio foi tremido mas, em breve, a presença em palco cresceu e foi muito agradável. Ana Franco (pastor, gata, etc.) tem uma interpretação cenicamente brilhante; em plano vocal, pareceu-me excelente para os papéis em questão, embora com uma vocalidade um bocadinho menos brilhante que a dos cantores anteriormente referidos. Não me recordo dos detalhes da interpretação de Carolina Figueiredo (mamã, chávena chinesa, etc.) nem de Carla Caramujo (princesa, morcego, etc.). As suas intervenções foram tantas e tão curtas que, embora tenha sido há um par de horas, já não recordo nenhum aspecto em particular à parte de uma impressão geral de bom nível vocal. Em linha com este último comentário, lamento não poder ser mais específico ou elogioso.
      João Pedro Cabral (bule, velhinho, etc.) teve uma interpretação muito cómica como “bule”, muito ajudado pela caracterização – mas também pela sua voz, que evoca repertório cómico. Gostaria de o ouvir novamente, diria eu, num papel de tenor rossiniano. Tiago Matos (relógio, gato), apresentou-se em bom plano vocal. Tive a impressão de estar a ouvir uma voz sólida e trabalhada. A avaliar por esta interpretação de 2013, não manteria a opinião de hoje à noite; concluo que estamos na presença de um barítono cujas capacidades estão em rápida expansão e em quem vale a pena apostar.
      Deixo para o fim uma ligeira desilusão e uma grande surpresa. A desilusão foi o barítono Ricardo Panela (cadeira, árvore). Foi a primeira vez que o ouvi ao vivo. O barítono sediado no Reino Unido recebeu críticas muito positivas a propósito de Dialogues des Carmelites, o que aguçou a minha curiosidade para o ouvir no broadcast que, na altura, foi feito pela RTP2. Segui-o também no YouTube e fiquei com uma impressão excelente. Hoje, talvez por azar da circunstância, não fiquei entusiasmado nem pelo volume da voz, nem pelo timbre. Em termos de barítonos portugueses, fiquei muito mais entusiasmado no princípio deste mês com André Baleiro em The Rape of Lucretia. (Talvez escreva umas rápidas linhas sobre o assunto em breve.) Por fim, a grande surpresa: Raquel Luís, como a criança. Não sei em que tipo de caverna é que eu tenho estado para nunca ter ouvido falar desta brilhante intérprete. Foi impressionante ver como a meio-soprano conseguiu abordar uma personagem tão simples e – na minha opinião – desinteressante, e revelá-la por uma introspectividade simples e inocente. O volume da voz é generoso e o timbre é atractivo, com alguma profundidade. Estive a analisar o seu currículo no programa de sala e não me surpreende minimamente: Hänsel e Gretel, coro em Bayreuth, Alemanha. A primeira ópera, por razões óbvias; o coro em Bayreuth e a escola alemã pelo profissionalismo e, de certa forma, porque mesmo antes de ler sobre a cantora, estava a imaginá-la em lied ou até mesmo num papel wagneriano mais leve. Parece também relevante observar que o palco estava elevado em cerca de um metro. Suspeito (desde a Traviata de 2013) de que isto potencia significativamente a projecção das vozes dos cantores.
      A encenação de James Bonas, Cydney Phillips e a luz de Rui Monteiro mantiveram a ópera viva e criaram algumas imagens com impacto visual – algumas delas sem razão aparente. Finalmente vimos a maestrina titular Joana Carneiro a desenvolver algum trabalho palpável em palco, depois da sua mediática nomeação há alguns anos. Infelizmente, a minha ignorância desta ópera ainda não me permitiu fazer uma avaliação objectiva do trabalho da maestrina titular da Orquestra Sinfónica Portuguesa.
      Fiquei com a impressão de que assisti a um desfile/casting vocal com algumas piadinhas e não a um espectáculo interessante. Recentemente, vi no YouTube um debate com o elenco da última produção dos Mestres Cantores de Nuremberga na Metropolitan Opera. A dada altura, o entrevistador pergunta a Annette Dasch qual é a ópera que a diverte mais cantar; a resposta é a que me parece mais honesta entre os restantes (magistrais) cantores, e é “Hänsel e Gretel”. Faz todo o sentido, porque é de facto uma ópera descontraída, divertida e não obriga os cantores a regressarem a casa com o fardo de um papel pesado ou intenso. Este espectáculo fez-me lembrar deste excerto do debate, ou seja, do conflito de interesses entre “divertir-se” a fazer ópera e “trabalhar” a fazer ópera. Na minha opinião, só deve haver espaço para a diversão depois de haver trabalho – e isso é impensável numa temporada tão magra e com tão pouco repertório como a de S. Carlos. Depois da Turandot, foi a segunda em três óperas desta temporada que me deixou a impressão distinta de que alguém andou a divertir-se produzindo um espectáculo bizarro, e não a produzir ópera de qualidade. No fim, o aplauso foi baço, indiferente e indiscriminado. Acho que a audiência também achou que viu o espectáculo errado com o elenco certo.

☆☆
A seguir: Elektra no CCB (crítica)
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